domingo, 11 de março de 2018

Sobre as prévias no PSOL: um diálogo com a militância


Este texto fala sobre a proposta de realização de prévias partidárias no PSOL, para escolha de candidato a presidência da república e a outros cargos da eleição majoritária. É muito curioso observar as críticas a esse método de escolha de candidaturas. A crítica mais tradicional é aquela apontada pelo companheiro Pedro Costa Jr, do PSOL-DF: "só servirá pra nos digladiarmos ainda mais". Então é importante nos debruçarmos sobre essa objeção às previas, que me parece ser a mais citada pela direção. De acordo com essa visão, as prévias teriam o condão de acirrar as lutas internas do partido e inflamar os ânimos. As prévias fariam com que os militantes perdessem energia nas disputas internas ao invés de se dedicarem ao convencimento e diálogo com setores externos ao partido. Com isso, as prévias fariam com que nós deixássemos de disputar a sociedade e passássemos a nos dedicar quase exclusivamente às lutas internas, que seriam estéreis. Então eu me pergunto: será que os ânimos já não estão exaltados? Será que nós já não estamos nos digladiando? E mais: será que a insistência da direção em interditar as prévias não seria exatamente um dos principais pontos de divergência dentro da militância? 
O que quero dizer é que, boicotando as prévias, a direção está, na realidade, acirrando ainda mais os ânimos dentro do partido. Na tentativa de evitar o racha, eles estão causando uma cizânia muito maior. O debate do dia 7 de março, entre os pré-candidatos, mostrou muito bem isso: o processo de prévias emergiu como a principal bandeira de campanha de Plininho e outros. Enquanto isso, colocou-se a pecha de que Boulos e a direção do PSOL seiram antidemocráticos, o que não é necessariamente verdade. Ou seja, o boicote às prévias, realizado pela direção, acirrou ainda mais os ânimos dentro do PSOL.
Pois bem, aí vem o outro argumento importantíssimo para dispensar as prévias, também apresentado pelo companheiro Pedro Jr.: não vale a pena “ter prévias pra decidir algo q já tá evidente”. É o argumento de que as prévias seriam desnecessárias porque já estaria evidente que a grande maioria do partido votaria a favor de Guilherme Boulos. Vale lembrar também que ontem, dia 10 de março de 2018, de fato se apresentou uma grande maioria a favor da referida candidatura, por ocasião da Conferência Eleitoral do PSOL realizada em São Paulo.
Eu concordo com o argumento de que, quando há unanimidade na direção sobre uma candidatura, talvez não valha a pena realizar prévias, bastando uma votação simbólica. Eu me lembro que, em uma reunião da Executiva do PSOL-DF, no final de 2017, o ex-presidente nacional do PSOL, Luís, Araújo, disse que, se ao menos 90% da direção do partido concorda com a escolha de um candidato, não seria necessário realizar prévias. Achei a fala dele muito interessante por apontar um valor percentual para esse critério de “escolha evidente”. Ao mesmo tempo, é interessante notar que, na conferência de 10 de março, não se atingiu, nem de longe, esse percentual. Nessa ocasião, 71% dos delegados escolheram Boulos, muito abaixo dos 90% indicados por Luiz Araújo. Acredito que seja necessário estabelecer, com precisão, esse critério, e talvez seja essa uma boa proposta para se apresentar no próximo congresso partidário: qual o percentual razoável de votos no diretório seria suficiente para dispensar a realização de prévias. Sem esse critério previamente estabelecido, o argumento da “vitória evidente” parece ser casuística.
Dessa forma, quero dizer que os dois principais argumentos para se dispensar as prévias, a de que elas acirrariam as lutas internas e a de que a vitória de Boulos era evidente, não se sustentam, na minha opinião. O primeiro não se sustenta porque o boicote às prévias causou uma cizânia muito maior do que aquela se procurava evitar. O argumento da vitória evidente não se sustenta porque não se estabeleceu, previamente, o percentual que configuraria essa vitória evidente, se 90% ou 80% ou 70%. Eu me lembro que, no Congresso Nacional do PSOL, em 2013, a US impôs a pré-candidatura de Randolfe Rodrigues à presidência por meio de uma estreita margem de votos, menos que 55%. Ou seja, o argumento da vitória evidente foi dispensado e a ala majoritária impôs um nome bastante impopular no seio da militância organizada do partido. Mais tarde, o próprio Randolfe reconheceu isso e abriu mão da candidatura, abrindo espaço para Luciana Genro. Isso mostra que argumento da vitória evidente se mostra elástica e casuística dentro do partido, demonstrando a necessidade de se estabelecer, o mais rápido possível, qual seria o percentual razoável de votos para se dispensar as prévias.
Por fim, quero dizer que, se houvesse prévias no PSOL, provavelmente votaria exatamente naquela candidatura que foi escolhida pela direção: Guilherme Boulos e Sônia Guajajara, sobretudo após o debate do dia 7, que, na minha opinião, acabou mostrando um pouco do ranço anti-petista que ainda paira sobre uma parcela da militância. Concordo que o vídeo de Lula na Conferência do dia 3 de março era dispensável, e isso mostra que não é seguro deixar a comunicação de campanha unicamente nas mãos da Fora do Eixo e Mídia Ninja. Contudo, a candidatura Boulos-Guajajara parece representar uma aposta (arriscada, diga-se de passagem) na aliança do PSOL com dois segmentos importantíssimos do movimento social: movimento dos trabalhadores sem-teto e movimento indígena. São segmentos que, que há bastante tempo, descolaram-se do petismo e tiveram a coragem de fazer as críticas necessárias ao governo do PT. Além disso, entendo que o golpe de 2016 representou uma importante mudança na conjuntura política do país, que exige de nós também uma mudança de postura, diante da tal onda conservadora.
Acredito que as prévias fortaleceriam a democracia partidária e permitiram um debate mais aberto e franco sobre as candidaturas. As prévias são uma oportunidade para se propor ideias para o programa de governo e melhorar o diálogo com a sociedade. O debate entre os pré-candidatos serviria como uma espécie de treinamento para as difíceis disputas que ocorrem durante a campanha. Existe a ideia também de se realizar prévias amplas, com a participação de não-filiados, como ocorre dos Estados Unidos, o que deve ser feito de maneira criteriosa, para evitar fraudes. Outra proposta é fazer prévias com pesos diferentes para os votos de filiados em relação ao de não-filiados. Prévias seriam desgastantes? Talvez, mas a democracia exige de nós um exercício diário de diálogo e compreensão do outro. Uma candidat@ escolhida por prévias teria muito mais legitimidade para falar em nome do partido. Fica a dica para a próxima eleição.

sábado, 28 de outubro de 2017

Ensaio sobre o assalto

Hoje decidi publicar um texto que escrevi a mais de dois anos atrás, após ser assaltado.

Salvador, 1 de junho de 2015

Na semana passada, fui assaltado pela primeira vez. Quatro dias depois, fui assaltado pela segunda vez. Na primeira, o assaltante empunhava um revolver, na segunda, uma faca.

Quando uma pessoa é assaltada, não é somente a sua vida e sua integridade física que são colocadas a prova, mas também as suas mais profundas convicções e valores. Num assalto, somos convidados a entregar os nossos pertences pessoais sob a ameaça de um tiro, de uma facada ou algo do tipo.
Foi um choque! Por mais já tivesse tentado me preparar psicologicamente para um assalto, isso me chocou. Eu nunca tinha passado por algo parecido: uma ameaça tão direta à minha vida. Isso me levou a pensar que a matéria-prima principal do assaltante é o medo. Pensei, inclusive, que ele não tinha nenhuma fonte de legitimação para aquele ato. Por que assaltar? Por que ameaçar a vida de alguém daquela maneira? Depois pensei que havia sim fontes de legitimação: o estado de necessidade. Aliás, isso está estabelecido na própria legislação penal (artigo 23), como causa excludente de ilicitude. Quando uma pessoa rouba comida porque está com fome, não pode, de acordo com a lei, ser preso ou criminalizado, pois foi a extrema necessidade que o levou a cometer aquele ato.

Além disso, as instituições sociais também nos assaltam cotidianamente, sobretudo o Estado e o patrão. O primeiro nos obriga a pagar impostos sob pena de sermos presos, pois sonegação é crime no Brasil, o segundo nos subordina e nos explora, amparado pelas leis vigentes neste mesmo Estado. A propriedade privada e o Estado andam juntos, e isso está no âmago do sistema capitalista. Eles nos roubam cotidianamente. E muitos estão tão acostumados que nem percebem ou nem se incomodam, ou às vezes até se ofendem e se incomodam, mas desistiram de lutar coletivamente. E então passam a lutar individualmente contra o capitalista, tornando-se mais um capitalista. Paradoxalmente, aqueles que lutam individualmente contra o capitalismo, tornam-se capitalistas. Aquele que faz tudo para enriquecer e sair do jugo do patrão e do Estado, acaba se tornando um novo patrão ou burocrata. A única saída, portanto, é lutar coletivamente contra o capitalismo, defendendo a abolição da propriedade privada e dando início a um novo regime político, baseado na solidariedade e no amor.
Segue um comparativo entre as três espécies de assalto: a realizada pelo Estado, pelo patrão e pelo marginal.


Estado
Patrão
Marginal
Fonte de legitimação
A constituição e as leis
O contrato de trabalho e a assunção dos riscos
A necessidade
Como ele faz para convencer você a fazer o que ele quer que você faça?
Educação
Oferta de salário e vantagens.
Pedido
O que ele faz se você se recusar a fazer o que ele quer que você faça?
Ameaça de prisão
Ameaça de demissão
Ameaça à integridade física.

                Existe uma relação direta entre a pobreza e a violência. Muitos dos assaltantes já foram pedintes e/ou moradores de rua. Tanto é assim que o segundo assaltante, após pedir o meu celular, pediu 10 centavos. 10 CENTAVOS!!! Ele estava tão acostumado a pedir 10 centavos enquanto mendigo que, ao se tornar assaltante, apontando uma faca nos outros, nem mudou o discurso, que já estava por demais impregnado: “Dê qualquer coisa: 10 centavos.” Diante de uma situação como essa, acho que a delegacia não é o melhor lugar para se fazer um boletim de ocorrência. Devo relatar o caso ao Centro de Referência em Assistência Social (CRAS)
Além disso, há muitas pessoas que também roubam as outras sem apontar uma arma, por meio da corrupção, por exemplo. Não se está aqui a justificar a violência e sim em melhor compreendê-la para melhor combatê-la. O combate à violência urbana deve estar aliada ao combate à propriedade privada e ao Estado. Todas as formas de opressão e preconceito devem ser abolidas. Mas antes de combater os vícios dos outros, temos que combater os nossos próprios. Antes de combater o capitalismo que existe nos outros, temos que combater o capitalista que existe dentro de nós. Antes de combater o Estado, temos que combater o ditadorzinho que existe dentro de nós. Antes de tirar o cisco que está no olho dos outros, temos que tirar a trava que está em nosso próprio olho. Assim poderemos enxergar melhor o cisco que está no olho do outro.
                Devo confessar que, em certos momentos, senti desolação pelo ocorrido e até raiva dos assaltantes. Mas, depois de colocar as ideias no lugar, devo dizer que não arredo pé em nenhum centímetro das minhas convicções espirituais e políticas.

                Apresento, portanto, algumas ideias da esquerda e dos direitos humanos sobre como combater a violência urbana:

1)      Redução drástica das desigualdades sociais e melhoria de distribuição da renda e da propriedade;
2)      Melhoria das políticas sociais: educação, assistência social, saúde, cultura, etc.
3)      Combate intransigente ao desemprego. É inadmissível que, em uma sociedade, existam pessoas que procuram emprego e não encontrem. É preciso melhorar a quantidade e a oferta de empregos. A criação de empregos públicos é uma das formas de o Estado combater o desemprego. O incentivo ao cooperativismo é outra forma de combater o desemprego.
4)      Liberalização e regulamentação de todas as drogas. A política de guerra às drogas é a política pública mais fracassada de toda a história da humanidade. Precisamos de uma política pública focada na ampliação das liberdades e não na restrição. Assim, a atuação do Estado deve ser focada em dar oportunidade de saída das drogas. Há muitas pessoas que querem largar o vício das drogas e não tem um tratamento adequado. Imagine se o dinheiro gasto na repressão e nas prisões fosse usado em tratamentos psicológicos, médicos e de assistência social para aqueles que querem se tratar e largar o vício?

Ao mesmo tempo, sinto que estão reforçadas e revigoradas as minhas convicções espirituais. Como diria Mahatma Gandhi: “os poderosos podem prender e vilipendiar o seu corpo, mas jamais aprisionarão a sua alma”. Nosso espírito é irremediavelmente livre e imortal. Somos espíritos imateriais e imortais, temporariamente encarnados em um corpo material, em um invólucro biológico que pode ser perdido a qualquer momento. O corpo é uma espécie de prisão-escola. Temos muitas coisas a aprender enquanto estamos encarnados, mas não podemos nos esquecer de que este corpo é uma prisão, que limita a nossa capacidade de deslocamento, além de nos impor uma série de necessidades: comer, dormir, etc.
Estamos em um caminho de progresso espiritual e nos tornamos cada vez mais livres, na medida em que compreendemos as leis de Deus e as aplicamos em nossas vidas. A primeira delas é a lei do amor e do perdão. Fazer o bem sem olhar a quem, perdoar as ofensas e seguir em paz, de cabeça erguida, sem nenhum sentimento de culpa, inveja, pena ou medo.
                As portas do futuro estão abertas para nós. Cabe a nós fazermos com que este futuro seja repleto de amor, paz, fraternidade, igualdade e liberdade.

Diante da crise, eu aposto todas as minhas fichas no amor.
A Deus, a você, a mim, à humanidade, à natureza...
O perdão desbloqueia nossas vias espirituais
E deixa o amor fluir tranquilamente.
“Deixe-me dizer, sem medo de parecer ridículo,
Que o verdadeiro revolucionário é movido por grandes sentimentos de amor.” (Che Guevara)

“Não se combate o ódio com o ódio. O ódio só pode ser combatido com o amor.” O amor é a melhor resposta que podemos dar aos assaltantes, aos patrões e aos ditadores. É a melhor forma de dizer que eles não venceram, que nós continuamos lutando por um mundo melhor. E que não desistiremos nunca!


“Os idealistas são incorrigíveis. Se lhe roubam o céu, eles fazem do inferno o seu céu.” Nietzsche

sábado, 31 de dezembro de 2016

A guerra santa e a paz divina

             Com o aprofundamento da crise, é crescente o número de pessoas que vêem na guerra uma alternativa para se combater os problemas sociais, econômicos e políticos que nos assolam. Recentemente, li uma reportagem que fazia uma analogia entre o período atual e a década de 1930, que foi marcada pela crise econômica e a ascensão do nazismo na Alemanha e outras partes. Estava preparado o terreno para a irrupção da segunda guerra mundial. A matéria apresentava uma série de historiadores que consideravam válida a comparação entre os dois períodos, outros que não.

            Isso nos faz refletir: o que leva uma pessoa a apoiar deliberadamente a guerra destrutiva como forma para se atingir um objetivo? São vários fatores: a ideia de que é impossível conviver com o adversário e que ele precisa ser destruído; o medo de que o adversário venha te destruir antes que você o destrua (a ideia da guerra preventiva), a ideia de que Deus quer que você destrua o seu adversário (jihad ou guerra santa); a ideia de que os custos da guerra são maiores do que os de uma paz hipócrita.
Este último fator é particularmente importante porque parece ser o argumento mais sedutor. Pensa-se que a situação já está tão ruim e angustiante que qualquer coisa é melhor do que isso. Pensa-se que já existe, de fato, uma guerra não declarada e que seria melhor se essa guerra fosse declarada, bastando-se reconhecer algo que já existe. Pensa-se que não temos nada a perder. Ou então a tese do Tiririca: “pior do que tá não fica.”
Ora, sabemos que as coisas podem, sim, piorar. Sabemos que esse clima político já se deu em outros períodos da história da humanidade e que nos conduziu a terríveis guerras, que deixaram um enorme rastro de destruição e tristeza por onde passaram. O mais interessante é que, após um período de guerra, as pessoas passam a defender o retorno da paz, mesmo que seja uma paz relativa, porque os custos da guerra parecem ter se tornado maiores que os custos da paz relativa. Ou seja, as pessoas entram em guerra por terem esquecido os seus custos e retornam à paz relativa em uma situação, via de regra, pior do que saíram: com o país destruído e instituições em frangalhos.
É difícil pedir calma quando as pessoas querem “tudo ao mesmo tempo agora!”.
Mas é o que vamos fazer.
Precisamos reconhecer os avanços que já ocorreram. É preciso valorizar o pouco de democracia que ainda nos resta. É preciso defender e preservar os nossos direitos políticos.
Com o impeachment de Dilma, o clima político piorou muito. Houve uma forte tensão em Brasília e em todo o Brasil no ano de 2016. As pessoas, pressionadas e manipuladas, acabaram caindo na extrema polarização política, ora tomando partido nas discussões, ora internalizando uma enorme raiva, alimentando uma falsa indiferença enquanto pensam: “tá tudo uma bosta! Tem que quebrar tudo mesmo!” Ou seja, a antessala da guerra civil.
Contudo, é preciso lembrar que temos uma democracia jovem e ainda muito frágil. A solução para os problemas da democracia é mais democracia. Não devemos jogar a criança junto com a água do banho. É preciso valorizar o que já conquistamos para podermos exigir mais.
É verdade que Temer traiu Dilma. Mas é verdade também que Dilma escolheu mal o seu vice. É público e notório que o PMDB não é um aliado confiável. Combater o governo Temer é tão importante quanto assumir a parcela de responsabilidade do PT.
A democracia é um método de organizar as guerras e conflitos políticos existentes na sociedade, evitando a irrupção de uma guerra civil nos moldes tradicionais. Sabemos que a democracia atual é muito deficiente, que reforça as extremas desigualdades existentes na sociedade brasileira. Por outro lado, só o fato de termos essa democracia já é muito significativo. É preciso lembrar que conquistamos o voto universal, que mulheres podem votar, que pobres podem votar, que analfabetos podem votar. E que todas essas conquistas foram conseguidas a duras penas.
Estamos assistindo a uma escalada na violência, em vários âmbitos. No dia 29 de novembro de 2016, houve uma enorme manifestação política na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Havia dezenas de milhares de pessoas vindas de todo o Brasil, para protestar contra a PEC do Teto de Investimentos e Gastos, que seria votada no Plenário do Senado naquele dia. Alguns manifestantes se exaltaram, agindo de maneira agressiva. A repressão da polícia foi enorme e desproporcional. Jogaram bombas de gás lacrimogênio em toda a Esplanada, transformando-a em uma praça de guerra. Uma coisa horrível, da qual eu fui testemunha ocular.
A violência tem essa característica: você fala alto, a outra pessoa responde mais alto, então você grita, o outro berra, você xinga, o outro dá um tapa, você dá um soco, o outro dá um pontapé, você dá um tiro, leva outro, todos morrem. Ocorre uma escalada da violência, forma-se um círculo vicioso, um espiral ascendente na qual o auge é a guerra, a morte e a destruição. Como parar essa escalada? Se alguém falar alto com você, fale mais baixo. Se alguém gritar, exercite o silêncio, com a certeza de que, com o seu silêncio, você disse algo muito mais importante do que todos os gritos do seu adversário.
Quando tiver oportunidade, fale com sabedoria, com razão, com respeito pelo outro. Valorizemos os nossos direitos políticos, construindo projetos e propostas políticas e apresentando-as de maneira fraterna para a sociedade.

“A escuridão não pode expulsar a escuridão, apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar o ódio, só o amor pode fazer isso.” Martin Luther King 

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

A onda reacionária e o movimento de resistência no Brasil

“Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda-viva
E carrega o destino pra lá”
Chico Buarque

                É difícil negar que o Brasil está passando por uma onda conservadora. Em 2014, foi eleito o congresso nacional mais conservador desde a ditadura militar. Setores das igrejas neopentecostais, juntamente com setores do empresariado e classe média descontente com o governo e a crise econômica conseguiram aproveitar o momento político para ampliar o seu poder. Esse processo culminou na destituição da presidenta Dilma e na ascensão de seu vice, Michel Temer, de perfil mais conservador. Prova disso é que ele compôs um ministério somente com homens brancos. Trata-se de um governo que visa aprofundar o duro ajuste fiscal que já vinha sendo implementado pela sua antecessora. Esse ajuste inclui privatizações, concessões de serviços públicos para iniciativa privada, arrocho salarial e interrupção dos concursos públicos, o que implica, em certa medida, em um desmantelamento do Estado, com sérios riscos para as políticas públicas que vinham sendo construídas. Ao mesmo tempo, a ascensão de Temer está relacionada a um movimento de limpeza ética, que pretendia retirar as pessoas corruptas do poder. Isso é uma grande contradição, pois Temer também está envolvido com esquemas questionáveis de financiamento eleitoral.

Foto de Gilherme Boulos, um dos grandes líderes políticos que estão emergindo desse movimento de resistência.

                Diante disso, os movimentos populares têm iniciado um movimento de resistência, buscando a manutenção das políticas sociais e evitar a retirada de direitos. Então vale perguntar, o que é esse movimento de resistência?

                Temos que tomar muito cuidado para não nos tornarmos uma esquerda raivosa, eivada de rancor e mágoa para com as pessoas que pensam diferente de nós. Talvez seja o caso de a esquerda mostrar a outra face. Há uma passagem bíblica em que Jesus diz: “Se derem um tapa em sua face direita, ofereça também a esquerda.” Por muito tempo, essa frase tem sido mal interpretada. Muitos interpretam como um ato de covardia e de fraqueza oferecer a outra face. Contudo, vale explicar o verdadeiro sentido dessa sentença, que me foi passada pelo querido Evaristo Nunes: mostrar a outra face não significa aceitar a violência sem nenhuma resistência. Trata-se de uma metáfora, na qual mostrar a outra face significa mudar a sua postura, mudar o seu comportamento. Assim, diante do golpeachment, a esquerda brasileira é convidada a mudar a sua postura, procurando agir de uma maneira mais inteligente, de modo a evitar que situações como essas voltem a ocorrer. Não adianta responder à violência com mais violência. Temos que responder à violência com inteligência e criatividade.

                É o momento de fazer uma profunda auto-crítica, reconhecendo os nossos erros e também os nossos acertos. Sabemos que os esquemas de corrupção na Petrobras foram um erro. O mesmo vale para o mensalão e todos os desvios éticos que ocorreram ao longo destes 13 anos do PT no governo federal. Um grande erro foi não ter feito uma auditoria da dívida pública, que poderia ter passado a limpo todo esse processo obscuro de endividamento público, que absorve grande parte do nosso orçamento e serve de pretexto para o ajuste fiscal realizado pelo governo atual. O PT não promoveu a democratização da comunicação e pagou um preço muito alto por isso. A mídia continua sendo dominada por um seleto grupo de pessoas, bastante identificada com os valores capitalistas. Da mesma forma, é importante reconhecer os avanços em termos de políticas sociais, com destaque para a expansão das universidades públicas, fortalecimento do SUS, do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e todas as suas políticas, o Bolsa Família, que tirou milhões de pessoas da fome, o fortalecimento das políticas culturais, com a criação do Sistema Nacional de Cultura, o Programa de Aquisição de Alimentos, entre tantas outras.

Buda diz: “A mudança não é dolorosa. A resistência à mudança é.”

É interessante que Buda fala sobre a resistência e não sobre o movimento de resistência. Esse ponto é muito importante. Não se trata de resistir à mudança. Trata-se de desenvolver, junto com seus pares, um movimento de resistência à mudança. Quando falamos em uma onda reacionária, estamos falando de uma resistência à onda progressista que havia ocorrido antes. Dentro desse pensamento dicotômico, é razoável pensar que, depois da onda reacionária, haverá uma nova onda progressista. O que é interessante notar é que, ao longo dessas ondas de progresso e de reação, existe um processo maior de progresso, de modo que a sociedade parece se desenvolver por meio de ciclos ascendentes de progresso e reação. As ondas reacionárias não conseguem retirar todos os avanços sociais conquistados ao longo do período de progresso, apenas alguns. Por exemplo, não se vê ninguém propondo, deliberadamente, que os negros voltem a ser escravizados. Da mesma forma, não se vê ninguém propondo que as mulheres percam o direito ao voto. Talvez porque essas conquistas já estejam sedimentadas, já tenham sido internalizadas na cultura de tal forma que não se pensa mais em retornar para o passado de modo tão brusco. Ao mesmo tempo, isso não significa que não haja machismo ou racismo na sociedade atual. Sabemos que há, e muito! Sabemos também que essa onda reacionária está relacionada ao incômodo sentido por determinados setores com os avanços dos direitos sociais para amplas camadas da sociedade. Apesar de isso não ser dito deliberadamente pelos conservadores, parece que é algo impresso no subconsciente e que emerge por meio de determinados atos e palavras. A composição ministerial exclusivamente masculina é um exemplo disso.

Desse modo, o nosso movimento de resistência é, antes de tudo, um movimento, é algo que não está pronto e acabado, mas que se faz ao longo do processo. Não temos o controle desse movimento de resistência e também não temos uma pauta única e acabada, temos algumas ideias que vão se misturando com outras ideias e formando outras ideias. Ideias essas que também se misturam com outras ideias e formam novas ideias. Plantando a cada dia uma sementinha, por meio de atos sublimes de amor, vamos, aos poucos, formando um caldo que, quando estiver no ponto, será generosamente servido ao nosso povo, por meio de um novo governo de cunho progressista.

O movimento de resistência não deve ser saudosista, apontando para um passado supostamente idílico. O movimento deve apontar para o futuro e apresentar propostas que encontrem ressonância nos corações e mentes da classe trabalhadora e de todos que desejam o progresso social e humano.

O movimento de resistência não deve ser um processo de enrijecimento, no qual nos tornamos duros, rígidos, recalcados com a perda do poder. Ele deve ter a leveza de quem acompanha as mudanças de seu tempo, cientes das suas limitações, aberto ao novo, com renovada esperança, bom ânimo e  foco no futuro que será certamente melhor. "É preciso arrancar alegria ao futuro", como diz Vladimir Maiakovski.

O movimento de resistência deve ser, antes de tudo, artístico e filosófico. Ironicamente, foi na ditadura militar que conhecemos a roda viva de Chico Buarque e nos emocionamos com o bêbado e o equilibrista de Elis Regina. Hoje estamos atravessando uma onda reacionária. Com nosso esforço, ela irá se transformar em uma marolinha. Que possamos transformar a raiva e o ressentimento em inspiração para construir as mais belas poesias, canções e discursos. Que a revolução brasileira seja a mais linda e pacífica de todas.

domingo, 17 de julho de 2016

Colocando a guerrinha para descansar

Um certo dia foi surpreendido com a seguinte frase: “As pessoas entram em conflito por almejarem o mesmo objetivo.” Não me lembro o autor, foi dita no meio de um texto sobre greve na educação em um blog. Já faz uns anos. Mas essa frase me marcou muito. Eu medito sobre ela até hoje.

À primeira vista, recebi a frase com grande incômodo e provocação. “Como assim, as pessoas entram em conflito por almejarem os mesmos objetivos?” Em um conflito, os objetivos são diferentes, cada um defende seu ponto de vista, argumenta, são motivos diferentes, não?

Ao mesmo tempo em que me senti provocado, também abri um sorriso. Um sorriso daqueles que gostam de ser provocados. Pra falar a verdade, foi uma deliciosa provocação filosófica. E foi dita como uma frase meio óbvia, no meio de um texto grande. Mas, de repente, aquela frase se destacou, como se acendesse um pisca-pisca. A frase realmente me chamou a atenção.

“As pessoas entram em conflito por almejarem o mesmo objetivo.”

É um tapa na cara de qualquer militante político como eu. Um tapa na cara!

Mas enfim, passado o atordoamento causado pela bordoada, vamos à reflexão. Será que essa frase faz algum sentido? Se um candidato de direita e um candidato de esquerda estão disputando a presidência da república, eles têm o mesmo objetivo? Se dois países estão em guerra, eles têm o mesmo objetivo? À primeira vista não, pois um candidato de esquerda que reduzir as desigualdades sociais, e o candidato de direito quer ou aceita mantê-las, de acordo com a noção de Bobbio de direita e esquerda. 
No caso, da guerra, um país pode entrar em conflito com outro para defender as suas fronteiras diante de uma invasão. Enquanto um está invadindo, o outro está se defendendo. Seriam objetivos diferentes.

Contudo, se olharmos por outro ângulo, a frase faz algum sentido: tanto o candidato de direito quanto o candidato de esquerda almejam ocupar o cargo de presidente da república, ambos os candidatos acreditam que, ao ocupar aquele cargo, eles terão poder para implementar um projeto político, ambos acreditam no poder exercido pelo presidente da república e almejam exercem esse poder. O objetivo imediato é basicamente o mesmo, embora os projetos políticos a serem implementados sejam diferentes.

No caso de uma guerra, a questão é basicamente a mesma. Ambas as forças envolvidas almejam obter o domínio político do território em disputa. Eles se igualam em relação ao objetivo imediato ali colocado. Geralmente, a fonte de legitimidade que se argumenta para garantir a posse do território é: “Nós chegamos primeiro aqui nessa terra. Essa terra é nossa e não de vocês. Vaza!!!” Os oponentes podem dizer: “Nós temos o direito de ocupar esse território, é um destino manifesto! Deus quis assim.”, para usar o argumento levantado pelos ingleses para invadirem a América do Norte e guerrearem contra os indígenas.”

Em uma greve, por exemplo, temos dois lados em conflito: os trabalhadores, que querem melhores salários e melhores condições de trabalho; e os patrões, que querem arrochar o salário e ampliar suas margens de lucro. Visto por outro ângulo, há trabalhadores parados, patrões preocupados com a saúde financeira da organização, e usuários sem receberem o serviço ou produto. Visto por outro ângulo, há duas partes em conflito, ambas desejando ter os desejos atendidos e objetivos atingidos.

Passemos a analisar o caso do assaltante e do assaltado. O assaltante mostra a arma e pede o celular e carteira. Ele está disposto a trocar a vida do assaltado pelo seu celular e carteira. Enquanto o assaltante, por meio da ameaça, quer subtrair os pertences da vítima. O assaltado deseja manter a posse da carteira e do celular. Aí está constituído o conflito. Ambos almejam a posse dos mesmos objetos materiais, possuem o mesmo objetivo. A vida carnal do assaltado, que também é um objeto material, está em jogo. A sua vida espiritual, que é imortal, não está em jogo. O assaltado tem a opção de entregar os pertences ou reagir ao assalto e arriscar a vida. Sempre temos uma alternativa.

O mesmo ocorre numa disputa por emprego, num concurso público, por exemplo. Há uma suposta competição para ocupação de vagas supostamente escassas. Digo supostamente porque, se o Estado assumisse o compromisso de garantir o pleno emprego, não deveria haver essas lutas fratricidas por vagas no “mercado de trabalho”. Aliás, o trabalho não deveria ser vista como uma mercadoria, mas como um direito e um dever do cidadão.

Com as “disputas amorosas” não é diferente. Quando dois homens entram em disputa por uma mulher, ambos almejam o mesmo objetivo imediato: a conquista da mulher. Neste ponto, é interessante notar que esse tipo de disputa ocorre, salvo engano, em praticamente todas as espécies de mamíferos. Inclusive os animais herbívoros, que não utilizam a agressividade para a busca do alimento, entram em ferozes brigas pelo domínio do território e das fêmeas. A briga de galo talvez seja a mais famosa, mas esse fenômeno também é visto em girafas e muitos outros animais. O ciúme e a disputa pela exclusividade sexual do parceiro pode, portanto, ser reflexo de um primitivismo latente.

O mesmo ocorre em competições esportivas. Os atletas e clubes entram em disputa porque todos querem vencer o jogo e ser campeão. Cria-se uma suposta escassez do título de campeão para incentivar as disputas e rivalidades. Um primitivismo talvez.

Se formos para o caso da derrocada do PT no Brasil, temos uma situação parecida. O PT diz: “Nós vencemos a eleição e temos legitimidade para governar.” A oposição de direita diz: “Houve crime de responsabilidade e, portanto, o impeachment está justificado.” Em comum, temos o fato de que ambos almejam ocupar o cargo de presidente da república e exercer o Poder Executivo do país.

Esse fenômeno, que podemos chamar de igualdade das razões opostas, não deixa de ser interessante, muito muito curioso. Nós temos a tendência de essencializar as relações. Confundimos a aparência com a essência. Os conflitos que enfrentamos são aparentes. O nosso espírito imortal é a essência. Na realidade, temos o branco e o preto dentro de nós, o trabalhador e o patrão dentro de nós, o ladrão e a vítima, a mulher e o homem, a direita e esquerda, o bêbado e o equilibrista dentro de nós.

O que eu proponho? A arte!



A arte destrava todos os conflitos, mexe nas entranhas, limpa os poros da razão. Desequilibra e reequilibra.


Lute! Lute sempre! E lute com arte! Lute com um espírito de desapego que a dignifique! Ame o seu oponente como ama a si mesmo. Só assim poderemos vencer a guerra, que é muito mais interna do que externa.

quarta-feira, 30 de março de 2016

O Impeachment entre o técnico e o político: a escolha técnica em uma decisão política

Hoje, dia 29 de março de 2016, da tribuna do Senado Federal, Vanessa Graziolim (PCdoB-AM) afirmou que a decisão sobre impeachment da presidente Dilma deve ser uma decisão técnica. De acordo com sua visão, seria necessário analisar se houve ou não crime de responsabilidade que, de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, é o requisito básico para um processo dessa natureza. Ela sustenta que Dilma não cometeu crime de responsabilidade e, portanto, não deve ser destituída do cargo de presidente. Simples assim.
Vamos discutir aqui, portanto, uma visão que é muito difundida no meio jurídico. A visão de que o julgamento feito pelo Poder Judiciário deve ser imparcial, neutro, isento. A visão de que o julgamento deve ser fruto de uma aplicação técnica das normas aprovadas pelo Poder Legislativo. Mesmo no meio jurídico esta visão é muito questionada. Basta ver, por exemplo, as discussões do jurista José Geraldo de Souza Jr.. professor da Universidade de Brasília, sobre o “Direito achado na rua”.
Primeiramente, vamos conceituar o que é técnico. Técnico é a aplicação mecânica de uma determinada regra. Aquilo que é estritamente técnico dispensa o exercício da razão, tendo em vista que qualquer pessoa que concorda com aquela regra julgaria da mesma maneira. A questão da técnica e da imparcialidade são muito caras ao Poder Judiciário. Os juízes, no Brasil, são escolhidos por concurso público, que é uma avaliação considerada técnica. Eles não passam por um processo democrático de escolha. Mas se, de acordo com a Constituição Brasileira, “todo poder emana do povo”, Os juízes não deveriam ser escolhidos democraticamente pelo povo? O principal argumento para que não haja eleições para juiz é de que o Poder Judiciário realiza a aplicação técnica das leis aprovadas pelo Poder Legislativo, sem distinção de qualquer natureza. De acordo com essa visão, ou com essa cegueira, o juiz deve aplicar igualmente a lei, “doa a quem doer”. Ou então, “dura lex, sede lex.” Por isso, um dos principais símbolos do Poder Judiciário, ostentado em escultura nas proximidades do prédio do Supremo Tribunal Federal, em Brasília (vide foto) é o de uma pessoa com os olhos vendados. O objetivo é simbolizar a imparcialidade, neutralidade e isenção da justiça. “A simbologia dessa escultura tem origem na deusa romana Justiça, que corresponde à grega Dice, filha de Zeus com Têmis, a guardiã dos juramentos dos homens.” (CORREIO BRASILIENSE apud WIKIPEDIA, 2016)



Um julgamento pode ser técnico? Em parte, pois ele pode partir de uma aplicação mecânica de determinada regra. Mas a escolha de aplicar a regra é uma decisão política. Zizek, um dos maiores filósofos da atualidade, explica-nos que “uma escolha é sempre uma meta-escolha, ou seja, está atrelada a uma escolha sobre o método de escolho em si. A escolha está atrelada a uma decisão anterior, de fundo. Antes de escolher entre A e B, é necessário escolher o método de escolha. Por mais que a escolha entre A e B seja uma decisão mecânica, ou seja, técnica, a decisão sobre o método de escolha é uma decisão política, pois implica em relações de poder entre as pessoas. Poder é a capacidade de influenciar ao outro e a si mesmo. Todas as nossas decisões, por mais que possuam um verniz técnico, possuem também uma fundamentação política, ou seja, implica em influenciar ao outro e a si mesmo, uma vez que estamos em uma complexa teia de relações sociais, culturais, econômicas, ambientais, etc.
Esse é um debate comum também no jornalismo. Muitos concordam que uma reportagem não pode ser totalmente imparcial, neutra, isenta e objetiva. Mas acredita-se que a imparcialidade, por mais que não possam ser atingida, deve ser para sempre buscada, mesmo que enquanto uma utopia. Será que os jornais deveriam buscar a imparcialidade? Será que os juízes devem buscar a objetividade? Será que os pesquisadores devem buscar a isenção? Será que os professores devem buscar a neutralidade? Será que cada um de nós deve buscar, enquanto objetivo e utopia, a imparcialidade, neutralidade, isenção e objetividade?
Acredito que não, a imparcialidade absoluta é não somente inatingível, mas também indesejável.
Devemos reconhecer que, ao observar um objeto, modificamo-lo. Devemos reconhecer que a fé é capaz de mover montanhas e que, mesmo sem querer, temos fé em alguma coisa, pois é uma característica intrínseca do espírito humano. A vontade de ser técnico ou mecânico pode estar relacionada à memória evolutivo do espírito humano, que, de acordo com Leon Denis, já passou por experiências no reino mineral, vegetal e animal, antes de chegar ao reino hominal. As pedras tem a capacidade de serem estritamente técnicas, tendo em vista que conseguem aplicar, mecanicamente, uma lei da natureza. Ao se arremessar uma pedra, é possível prever a sua trajetória e seu comportamento. Ao se arremessar um ser humano, não possível prever, com total segurança, se ele vai espernear ou não, se ele vai resistir ou não a tentativa de se arremessá-lo.
Ao mesmo tempo, a fé política está relacionada à nossa natureza dual, à dualidade entre corpo e espírito. A política está relacionada ao nosso enredamento à vida material. Muitas vezes, a paixão política faz com que nós percamos a capacidade de compreender o outro lado. “E do outro lado tem o lado do outro.”
É possível conciliar o técnico com o político? Sim. Sempre que produzimos uma tese e uma antítese, é possível produzir uma síntese. É indesejável ser estritamente técnico ou estritamente político. É necessário buscarmos uma síntese entre o técnico e o político, entre razão e emoção, corpo e espírito, passado e futuro. Nesse sentido é necessário buscar uma síntese entre a imparcialidade e a participação, entre a isenção e o engajamento, entre o neutro e o decorativo, entre a objetividade e a subjetividade.
No processo do impeachment, os parlamentares atuam como juízes, analisando o cumprimento da lei em um caso concreto. Não desejo que eles julguem com imparcialidade, nem com neutralidade, nem com objetividade, nem com isenção, prefiro usar termos menos extremistas e mais sintéticos. Desejo que eles se lembrem o quanto são parciais, limitados e questionáveis. Desejo que eles julguem com sabedoria, com isonomia, com inocência, com pureza, com sinceridade, com serenidade, com bondade.
Não desejo que eles julguem pensando no bem do Brasil, meramente. Desejo que eles julguem de acordo com os seus interesses e desejo que os seus interesses estejam integrados aos da maioria dos brasileiros, que eles sejam capazes de sintonizar a vontade das pessoas e com, parcimônia, devolvam ao povo o poder de decidir, respeitando a soberania popular. Nesse sentido, diante do descompasso entre Legislativo e Executivo no atual momento, pode ser boa a ideia de se convocar eleições gerais antecipadas no Brasil.

Referência:

A Justiça (escultura). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Justi%C3%A7a_(escultura). Acesso em: 30 mar. 2016